Pintor GUILHERME FILIPE
Guilherme Filipe –
vida e obra
Fajão, antiga vila do concelho de Pampilhosa da Serra, “situada em uma muito pitoresca concha da
serra do mesmo nome, alcandorada sobre o rio Ceira, perto da sua nascente,
entre altos e gigantescos penedos de xisto, cuja configuração oferece o aspecto
impressionante duma cidade morta, troglodita, escavada de cavernas e castelos
naturais (Penalva, Forno, Igreja dos Mouros e Porta da Falsidade). Quem quiser
fazer alpinismo e puder andar por entre estes penedos gozará dum espectáculo
verdadeiramente estranho, singularmente belo, e terá a ilusão não sabemos se
dum convulsionado afloramento do Inferno de Dante, visto por Gustave Doré, se
de ossadas de gigantes de outro planeta que rolassem do céu de escantilhão, e
ali ficassem espantosamente estáticos, suspensos sobre o abismo de soutos e
ervedais centenários. E quem no mais alto da serra subir à Rocha, a 1186 metros
de altura, poderá então contemplar para oriente, sul e poente, o deslumbrante
panorama de dilatados horizontes que vem lá do fundo da Beira Baixa e da
Estremadura, num mar de serras pardas, amarelas, azúis e violetas, cuja
ondulação lembra uma grande cavalgada que se levanta a carregar sobre a Estrela”.
Assim se refere, Guilherme Filipe no “Guia de Portugal – Beira Litoral, Beira
Baixa e Beira Alta” (1944), ao lugar onde nasceu em Janeiro de 1897 e onde
viria a falecer em 1971.
Proveniente de família abastada, passou a sua infância na
terra natal, que sempre recordará com enorme nostalgia poética: “montanhas petrificadas, dum lado e de
outro, para o céu se erguiam”… “andorinhas iam e andorinhas vinham chilreando;
asas doidas de amor batiam nos vidros da minha janela. E assim fui indo, até
que um dia, meu pai mandou-me à escola e comprou-me livros. Não esperava. Foi
resolvido isso numa manhã quando o professor passou à minha porta com o sacho
na mão”. “A minha infância foi uma garatuja de Pierrot e uma lágrima de
palhaço: um grito ferocíssimo de náufrago no mar das serras”. (1)
De espírito irrequieto e diletante, cedo revelou vocação para
as artes, nomeadamente, para a pintura, tendo estudado na Escola Superior de
Belas-Artes em Lisboa, sendo seu patrono Cândido Sotto Mayor, (fundador do
Banco Sotto Mayor). De igual modo, frequentou assiduamente os cursos livres da
Sociedade Nacional de Belas-Artes e o atelier do mestre José Malhoa. Porém, essa
primeira estadia lisboeta não satisfez inteiramente Guilherme Filipe, sobretudo
no que à necessidade de fraternal convívio de que vinha habituado no seu reduto
beirão, como aliás ele próprio o confessou.
“Em Lisboa passei o inferno sem um companheiro. Como Dante, passei na barca de
Caronte e assobiei o Fado, a trágica ladainha das perdidas”. (1)
Muda-se então para Madrid. Na capital espanhola magicamente
tudo mudou. Frequentou a Real Academia de Belas Artes de San Fernando, onde foi
aluno do mestre Joaquín Sorolla e colega, entre outros, de Salvador Dali.
Partilhou atelier com os escultores José Planes e José Clara. Nos seis anos que
passou em Madrid, (de 1917 até 1923) foi assíduo e activo frequentador das
inúmeras tertúlias artísticas e literárias, com especial relevância para aquelas
em que participavam, de igual modo, o seu mestre impressionista Joaquín Sorolla,
o retratista Vázquez Díaz e o pintor expressionista Solana na orteguiana
revista do Occidente; ou assistindo às tertúlias do poeta e filósofo Miguel de
Unamuno e Manuel de Azaña, político e escritor que viria a ser o último
Presidente da Segunda República Espanhola (1936-1939); também na Granja el
Henar, na rua Alcalá 40, onde pontificava Valle-Inclán o grande dramaturgo
galego e, especialmente, no Café Pombo onde Filipe foi recebido e acarinhado pelo
escritor e jornalista Ramón Gómez de la Serna como o representante do
romantismo português. Guilherme Filipe es
el representante de esse romanticismo portugués brumoso y difícil com que se
inician las adolescencias en Portugal, escreveu Gómez de la Serna.
Recordamos que no início do século XX em Espanha, tal como em
Portugal, a exemplo da tradição europeia, os cafés tinham esta vocação de
animação cultural, onde assiduamente os artistas e os intelectuais se reuniam informalmente
para salutares intercâmbios de opiniões, conhecimentos e experiências. É
inquestionável o facto de que estes estabelecimentos prestaram um inestimável
serviço às artes e ao conhecimento, ao impulsionarem o nascimento de inúmeros
movimentos artísticos e literários que mudaram radicalmente a nossa forma de
sentir e ver a Arte. Só em Madrid passei
momentos que a minha sensibilidade não esquecerá jamais. Ali encontrei o grande
Ramon Gómez de la Serna, o extraordinário escritor da Espanha moderna, lusófilo
e madrileno até à medula, em Pombo, ante a nova geração espanhola, pontificando.
Escreveu Guilherme Filipe. (1)
A primeira exposição colectiva em que participou, neste
período madrileno, deu-se em 1918 no Palácio das Artes. O trabalho exposto foi
intitulado de “Salomé”, baseado no tema bíblico que narra a decapitação de João
Batista. A curiosidade deste trabalho é que estava produzido numa tela de
grande formato, com tamanhas dimensões que não coube na porta de entrada.
Filipe optou por expor o quadro numa árvore à entrada do edifício. Tal
acontecimento foi largamente noticiado pela imprensa espanhola, tendo o próprio
rei Afonso XIII comentado como sendo um acto de rebeldia lusitana muy simpática.
Antes do seu regresso a Portugal, passou uma larga temporada
em Toledo com o caricaturista Luis Bagaria. Esta foi uma nova e profícua fase
de trabalho que o ambiente toledano lhe proporcionou, além do mais que certo estrito
contacto com a obra de El Greco, de quem bebeu alguma influência, nesta antiga
capital de Espanha.
Em Coimbra, o poeta Eugénio de Castro proporcionou-lhe um
atelier na Faculdade de Letras, onde produziu interessantes obras como O Cristo
Negro, inspirado na belíssima peça do mesmo nome, hoje patente no Museu Machado
de Castro, em Coimbra; O Retrato de Eugénio de Castro, Cenas duma Casa de Má
Nota, Aldeia da Beira (Fajão), O Retrato do Poeta (Miguel Torga de quem era
amigo pessoal), entre outras obras. O Retrato do Poeta pode ser admirado na
Casa Museu Miguel Torga, ainda em Coimbra, e facilmente reconhecemos o carinho
que o próprio Torga tinha pelo retrato, pois está em local de grande destaque
no seu local de trabalho. A sua primeira exposição individual ocorre nesta
cidade em 1922, a Universidade de Coimbra edita um soberbo catálogo, onde
colaboram o já citado Eugénio de Castro, Virgílio Correia professor de História
da Arte da mesma universidade, Ramon Gómez de la Serna, Correa-Calderón (o meu amigo galego que em Castela me
chamava irmão com acento saudoso,) o poeta Afonso Duarte, António Ferro,
Maria Saa, João Ameal e António Sousa.
O meio universitário e intelectual de Coimbra acolheu a
exposição com o sentimento misto de quem pouco compreendia o estado da Arte do
seu tempo e de admiração pelo espírito jovem e rebelde de Filipe, seguramente certificado
pela estadia madrilena, patente na sua pintura formatada numa cidade
cosmopolita, onde pontificavam movimentos artísticos que viriam a contribuir
para uma radical inovação nos domínios da Arte. Do que acabamos de dizer é sintomático
o que se lê no texto de abertura do citado catálogo, da autoria de Eugénio de
Castro: a extravagância por vezes macabra
dos tipos e das atitudes, a epilepsia das cores amassadas com fúria, e a
emaranhada apresentação de símbolos, inquietam-me e transtornam-me a ponto de
me incutirem de que saí para fora do meu tempo, de que já não sei ver coisas de
arte. Mas, perdidos entre todas essas extravagâncias, entre todos esses
paroxismos, e, triunfando deles, não são raros os detalhes que denunciam uma
visão sagaz e poética da vida, um amoroso enternecimento pela doçura rítmica das
linhas melódicas, e uma extática genuflexão ante os milagres sempre variados da
luz e da cor.
Menos temperamentais e mais assertivas são as afirmações de
Virgílio Correia: Guilherme Filipe é um
audacioso e um inovador… Aproveitando nas obras dos grandes pintores ibéricos,
antigos e modernos, aquilo que todo o artista tem de beber neles, a lição da
harmonia cromática, rapidamente, quase bruscamente se afastou da nebulosa
mística do aprendizado, desprendendo e diferenciando o seu estilo pessoal. Mais
adiante Virgílio Correia prossegue. Sendo
um contemporâneo e um revolucionário, nada tem de futurista. O estado de crise,
de inquietação e confusão em que se debate a pintura actual, como que o não
atinge. O pintor não hesita, não balança, não trepida, não volita indeciso
sobre este ou aquele fogacho.
Já o poeta Afonso Duarte fez uma
apologia apaixonada do jovem pintor, escrevendo: nunca o artista plástico andou tão afastado do artífice e tão próximo
da criação mediúnica dos Poetas!… Filipe tem a paixão imaginífica da cidade de
Coimbra; é o seu mais sortílego pintor. Também o historiador João Ameal faz
justas observações ao trabalho pictórico de Filipe: nos seus quadros, a indução tem um lugar mais alto que a observação –
mais o preocupa a alma orgulhosa das coisas do que os seus recortes. Guilherme
Filipe é um pintor dramaturgo, em cujas paisagens em cujas figuras vive a
teatralidade das evocações, das lendas e dos símbolos.
Numa altura em que o pintor contava
com vinte e cinco anos de idade, esta exposição em Coimbra foi um assinalável
sucesso. Dela faziam parte trinta e três trabalhos a óleo, cerca de trinta desenhos
e uma meia dúzia de trabalhos em pastel. Portanto, foi uma exposição onde
assumidamente Filipe quis dar uma visão panorâmica da sua produção artística,
não querendo privilegiar uma técnica em detrimento de outra. Todavia, haviam
obras que pelas suas dimensões e carga dramática, estavam destinadas a captar
os favores da atenção do público. Como eram o caso de “Salomé”, “O Cristo
Negro”, “A Ideia do Infante”, “Coimbra na Paisagem” e “Cenas de uma casa de má
nota”.
As obras apresentadas interpretam os
estilos e as técnicas adquiridas na aprendizagem com os seus professores e mestres;
primeiro com José Malhoa, na sua curta estadia em Lisboa, depois e sobretudo
Joaquín Sorolla, na sua mais dilatada experiência cosmopolita madrilena. Ambos
os mestres haviam sido fortemente influenciados pela tradição romanticista
ibérica, cujo expoente máximo foi Francisco de Goya e a sua enorme série de
pinturas negras, tendo Filipe seguido a tradição pictórica ibérica. Por outro
lado, não terá sido impunemente que passou uma larga temporada em Toledo, em
que a omnipresença de El Greco se respira em cada recanto da cidade. Isto é de sobremaneira
visível em “O Cristo Negro”, cuja figura excessivamente alongada e esquelética se
aproxima do traço do genial renascentista espanhol. Por coincidência, El Greco,
foi um pintor muito contestado na época, onde imperava o gosto pelos corpos
redondos e fortemente musculados herdados da tradição greco-latina. O seu
reconhecimento chegou somente no século XX com as tendências modernistas,
sobretudo, impulsionado pelos expressionistas e pelos cubistas.
No início do século XX, os ecos de
fortes movimentos de renovação na Arte que por toda a Europa pululavam chegam a
Portugal. Primeiro foi o Futurismo onde pontificavam Santa-Rita Pintor e Almada
Negreiros. Pouco depois o Cubismo com Amadeo de Souza-Cardoso. Guilherme Filipe
manteve-se, no entanto, fiel aos seus princípios académicos, tendo mesmo
afirmado no catálogo citado: “não sou um
futurista, nem um passeista, sou um pintor que pinta porque SIM!”
O Grémio Literário em Lisboa acolhe
em 1924 a sua segunda exposição individual, de que não possuímos grande
informação. Após uma curta temporada em Lisboa, volta a ausentar-se desta vez
com destino a Paris. Pelo caminho realizou várias exposições, nomeadamente, no
Porto, em Vigo, na Corunha, em Oviedo, Santander e Bilbau, aparentemente, estas
últimas cidades terão adquirido quadros seus. De regresso de Paris voltou a
fixar-se em Madrid por mais um ano, onde realizou várias exposições, entre elas
no Hotel Ritz.
Regressa a Portugal em 1932, a
Lisboa, onde para além da pintura se dedica a uma série de actividades
culturais e políticas. No ano seguinte, com o apoio de Guilherme Cardim e Fausto
Figueiredo funda no Estoril uma Escola de Acção Artística,
em colaboração com Augusto Pina. Nas próprias palavras do pintor esta escola
pretendia - "estimular as crianças e
desenvolver-lhes a intuição artística, para que com as noções elementares de
cor, de pintura, e música enriqueçam a inteligência e criem o sentido de ritmos
fortes." A escola fecharia pouco tempo depois da sua criação com
problemas financeiros, já que o ensino era gratuito e a grande maioria das
crianças que a frequentava provinha de meios mais desfavorecidos. Fundou
igualmente o Jardim Universitário de Belas-Artes em Lisboa, que entre outras
actividades, promoveu a criação de uma orquestra sinfónica que chegou a
apresentar-se no Coliseu dos Recreios; realizou inúmeros debates sobre arte e
filosofia na Sociedade Nacional de Belas Artes; uma homenagem ao professor Egas Moniz pela sua consagração com o Prémio Nobel; sessões clássicas de cinema,
as célebres "matinés das terças-feiras" no cinema Tivoli, com exibição de filmes comentados (tendo sido um dos comentadores); etc.
Na segunda metade da
década de 30, Guilherme Filipe afasta-se da vida cultural e artística da
capital e encontra refúgio na Nazaré. Aí dedica-se a pintar temas relacionados
com a vila de acolhimento, nomeadamente, com a pesca, os pescadores e as suas
mulheres de olhares melancólicos e distantes. Esse rasgado horizonte, a
omnipresença do mar, a tranquilidade e a luminosidade da Nazaré impulsionaram a
criação de Filipe e, permitiram abrir a sua composição cromática, inundando-a
de cor e luz. Este tempo à beira-mar é considerado por vários autores como um
dos seus períodos mais profícuos em termos artísticos. Foi também na Nazaré que
Guilherme Filipe organiza a Primeira Festa do Mar (Setembro de 1939), na qual
colaboraram Joaquim Manso, Hipólito Raposo, Afonso Lopes
Vieira e Almada Negreiros.
É, porém, como exímio
retratista que Guilherme Filipe se pode nomear, como o demonstram os já citados
retratos. A que se podem adicionar muitos outros, como o do poeta Santiago Presado, de Guida Keil do Amaral, o retrato equestre
de Mouzinho de Albuquerque, dos professores Diogo Furtado, Barahona Fernandes, Adelino da
Palma Carlos, Dias Agudo, Santana
Dionísio (pai e filho), Seabra Dinis e Mário Soares.
Salientamos ainda, três painéis para o Cine-Teatro Alves Coelho em Arganil (1954) e seis telas para
a Capela de Nossa Senhora da Guia em Fajão e um belíssimo retrato do padre
Nunes Pereira, pároco da mesma aldeia.
As obras de Guilherme Filipe podem ser admiradas nos museus de Coimbra,
Lisboa, Porto, Nazaré, Arganil e Fajão, bem assim como, em várias colecções
particulares em Portugal e no estrangeiro.
(1)
Palavras – Texto de Guilherme
Filipe inserto no Catálogo da Exposição na Universidade de Coimbra – 1922 (pagº
37 a 57)
Fontes: Guia de Portugal – Beira Liroral, Beira Baixa e Beira Alta (1944), Catálogo da Exposição na Universidade de Coimbra (1922), Wikipédia, Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Museu Dr. Joaquim Manso na Nazaré, A Comarca de Arganil, pessoasenmadrid.blogspot.pt, ancestralpampilhosense.blog.sapo.pt, matriznet.dgpc.pt, colipoleiria.blogspot.pt, memoria.ul.pt, pcv.pt, arcadja.com, archive.org (University of Toronto),
José Queiroga
Algumas
exposições em que Guilherme Filipe Participou:
1918 – Palácio das Artes em
Madrid (exposição colectiva)
1923 – Universidade de Coimbra
(exposição individual)
1924 – Grémio Literário em
Lisboa (exposição individual)
1930 – Hotel Ritz em Madrid (exposição
individual)
1930 – Lyceum Madrid (exposição
individual)
1933 – Grémio Literário em Lisboa
(exposição individual)
1934 – Exposição Colonial
Portuguesa no Porto (exposição colectiva)
1934 – Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra (exposição individual)
1937 – Galeria de Arte da Rua
Nova da Trindade (exposição individual)
1950 – Sociedade Nacional de
Belas Artes Lisboa (exposição colectiva)
1953 – Galeria de Março
(exposição colectiva)
1954 – Atelier da Rua Castilho
(exposição individual)
1955 – Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa (exposição colectiva)
1956 – Sociedade Nacional de
Belas Artes Lisboa (exposição colectiva)
1957 – Fundação Calouste
Gulbenkian Lisboa (exposição colectiva)
1959 – Sociedade Nacional de
Belas Artes Lisboa (exposição colectiva)
Guilherme Filipe no seu atelier na Nazaré
Retrato de Bernardino Machado
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