Antologia



































Prefácio para Solar Impudor dos Pássaros


Alguém afirmou que “a arte pode não mudar o mundo, mas pode mudar a forma como vemos o mundo”. Isto é bem verdade, na medida em que a arte é bela e celebra a beleza do mundo, auscultando os seus inexplicáveis mistérios, mas é também provocatória, não se ficando pela realidade. Partindo dela, abre o nosso imaginário, fazendo com que outros mundos se nos tornem acessíveis. Assim, a arte tem uma função social, abrindo horizontes e tornando possível, àquele que dela usufrui, partilhar das vivências e da sensibilidade do artista.

A poesia do meu amigo José Queiroga, fruto de muita dedicação e trabalho, faz-nos viajar para dentro de nós mesmos e resgatar, nas experiências vividas, o estímulo para a sublimação do nosso quotidiano. É um hino à vida nas suas diferentes vertentes, mas também uma luta incessante contra a morte (“A cada instante renascemos para a morte”, diz-nos ele). Há nela pontos de luz que nos conduzem através de paisagens interiores e exteriores onde o poeta, com as suas angústias e as suas alegrias, os seus anseios e os seus esmorecimentos, nos põe em face da vida e da sua finitude.

Sente-se neste livro uma constante perseguição do infinito e da sabedoria, e uma luta constante contra o esquecimento, no seu apelo constante à memória, porque esta é uma poesia em que as lembranças da própria vida se infiltram e se sedimentam: lembranças de pessoas, de lugares, de coisas. São recortes da realidade, colagens, distorções, desvios, mundos possíveis; o vento a levantar a areia e a sacudir as folhas das árvores, o som do mar, a luz do sol sobre a praia, a agitação das cidades, o silêncio das longas noites de insónia e outros tantos.
São memórias convertidas em palavras que, num momento, saltam do interior do poeta e tomam a forma de poema, com toda a liberdade. Liberdade que é assumida em todas as vertentes: a de deambular por cidades e países vários, emocionar-se e expor sentimentos, ser de uma ironia cortante, sonhar ou descrever a realidade nua e crua.

E esta liberdade também é visível no plano do significante, da linguagem utilizada e das regras gramaticais: liberdade a nível da palavra, da pontuação (ou falta dela), das rupturas sintácticas, da suspensão de frases, dos saltos de tema em tema, da alternância entre o objectivo e o subjectivo. A liberdade de não ter regras fixas. Tudo ao serviço da emoção e da comunicação, deixando ao leitor autonomia para fazer as suas próprias leituras, imaginar e até criar.

Para finalizar, uma referência muito particular à mestria das ilustrações da autoria do pintor Alberto Péssimo que, com a sua beleza, enriquecem de uma forma singular este livro.


Maria Adélia Fernandes




soberba
a luz
que inclina
o mar
desde
a espuma
ao sal
matutino

(in Solar Impudor dos Pássaros)


           




Canção para adormecer



Esperar pela madrugada
quando o silêncio é já impossível


sentir crescer
o vazio da sala enorme
as sombras que se repetem


sentir os andares de cima
pesarem sobre o corpo
a casa espalmando-se


esperando a madrugada
quando o sono é já impossível


sentir escorrer o suor
destas paredes velhas
os anos que se somam


sentir que as paredes se abrem
e nos contam histórias secretas


(in Solar Impudor dos Pássaros)


Antes da memória


É antes da memória
que flor a flor
no flanco das estrelas contra o vento
os espelhos se espalham por sobre o mundo


Oh! como são líquidas as paisagens
no espelho das paixões líricas


adeuses em flor desabrochados
onde a água que pulsa
é este rumor de montanha intranquila


onde a visão
única no espaço
é este momento antes de tudo, contra todos,
de silêncios tenebrosos por sobre o mito


Oh! como são de morte pura
as janelas debruadas a oiro lento


empresta-me a metáfora, o fogo,
o som que cresce na escrita
e vagarosamente inaugura o gesto intemporal


tudo antes da memória
que de flor em flor
no flanco das estrelas contra o tempo
os silêncios se espalham por sobre o mundo.


(in Solar Impudor dos Pássaros)




Para ti do outro lado do silêncio



Ainda do outro lado do silêncio
da morte do vinho do amor


gestos incorruptos no texto
no âmago da emoção


para que me escutes do outro lado
somos um ou dois
ou um milhão até
rodopiando nas vértebras
perscrutando subterrâneos ignotos


gritos em que o tempo pára
são também o mar desregrado
o ter-te do outro lado
sem fronteiras algumas


na campo da memória
flor a flor se colhe a poesia


e é por vezes (tu o disseste)
infância sentada na relva
humedecida de sonho e sol


isento de lágrimas para ti
do outro lado do silêncio
onde somos um
ou dois
ou um milhão até.

(in Solar Impudor dos Pássaros)


Tríptico do adeus furtivo



1.


Se levares o sol contigo
o tempo corre contra mim


pobre barco que não vence a rebentação
do caos da placenta
da global laceração do corpo


e o tigre que escala a montanha
conhece o fogo do meio dia


com o vento tudo parte
em direcção à safira da distância


até mesmo as sereias
que cantam
entre o marulhar da madrugada


quando o nevoeiro
se abate sobre a casa
e liquidifica o suor da noite






2.




se levares o sol contigo
amanhã acordas o silêncio dos lábios


as dunas em que adormeces em Junho
ardem de ansiedade
pelo regresso das areias que o mar levou


para dar nome ao segredo do gás
a alegria do ar que enche a montanha
antes do seu duplo lunar estarrecer de pasmo


como saltar de costas
para a metáfora aberta
sobre o mapa da saudade
e cair desamparado
na parábola do sem retorno


triste marioneta que permaneceu
demasiado tempo esquecida na arca
mas que cristais caleidoscópicos e demoníacos
fizeram regressar à vida






3.




se levares o sol contigo
os vapores que asfixiam os estores
abrem-se de mofo sobre o futuro
e maldizem as ondas
que dão à praia
estranhos artefactos inúteis da maré


deus que há-de vir sobre as águas
dançando com a mão no fogo


manhãs rasgadas de púrpura
misteriosos manuscritos perdidos em garrafas
na restinga da costa negra
explicam como salvar a obra
da eternidade que a espera


a precoce danação da eternidade


antes que adormeça nas nuvens
por temer a morte das entregas
o futuro fica a esticar na panela
como o canto das sereias na maresia


se levares o sol contigo
o lavagante sua.

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Poema para o futuro


Depois do futuro
as flores siderais
rastejam no silêncio
como um cometa a luz
que inicia a água da tarde


cognitiva aproximação dos raios
invisuais no rasto da luz
a ébria influência fónica
do nevoeiro ascensional
na acomodação ritual
da desordem futura


prostados de costas porém
atentos à linguagem invisível
das raízes residuais
na ascensão da luz vertical
de frente para a nudez da verdade


por sobre o passado
todo o poema é grito
aparentemente é um casulo
onde germina o conhecimento
inicial onde dorme fechado
com todas as pontas
em fogo no chão.

(in Solar Impudor dos Pássaros)



A casa que enlouquece


A casa enlouquece
nas franjas do fim do mundo


um anjo drogado
anuncia o estado de sítio
nos corações destroçados


era um clima
de desesperadas geografias
dias sangrentos no futuro
de projectos na gaveta
no interior do caos
dentro de madrugadas perdidas


ter esta consciência atroz
do grito cósmico
o arrepio dolente do perigo


ah! o frio que então empedernia
os ossos as articulações o sangue


era tudo doido e cruel


a casa dentro da casa
enlouquece.

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Imitação de Édipo


sim
devo confessar
que também eu
tal como voznessenski
os matei dentro de mim
antes de surgirem à luz
esplêndida do dia
em plena eternidade
onde deviam alinhar-se
com a pureza


sou portanto
assassino confesso
de poemas vários


sim eu também
aguardando um renascimento
da beleza na minha cama
para a possuir a horas incertas
de abandono


irrespiráveis
os meus lençóis de suor
escorrendo todo o sangue
de que são capazes os dias de fumo


as gáveas onde regurgitamos
primaveras pelas fileiras dos dedos
como quem sopra a despedida
de todos os suicídios


sim
devo confessar o caos
a vida que nos foge
a secreta espera do nosso ser colectivo
feito de nevoeiros imarcescíveis


palmas de mãos estéreis
no contacto com a noite


nós portugueses somos parvos!


sim este destino camuflado
de subtil decadência
marca a hora do nosso ser colectivo


há que empreender
a radical mudança de atitude qualitativa
sem a qual a nossa existência como povo
estiola progressiva e inexoravelmente


sim
confesso o caos
mas acredito
acredito
que dentro dos dias
enevoados do futuro
que é urgente perscrutar
existe um verso uma palavra
uma senha


armas restaurando o impossível
odes armadilhadas aos políticos corruptos


oh! quantos éramos necessários
para resistir a esta onda de nostálgica letargia
hoje só penso no futuro nuclearizado
nos nossos rostos desfigurados
pela poeira radioactiva
os nossos corpos conspurcados
pela febril busca incessante de novas
e inesgotáveis energias


quantos anos serão ainda precisos
para que a vida vença o limiar da morte


tudo isto pensava
frente à varanda incrustada na casa


ela era a mãe eterna e única
as roupas impossíveis
frente ao espelho de uma noite
que se pode dizer única
duma obsessão
que podemos dizer ímpar
porque à medida que o protagonista
caminha na areia
mais duro se torna ouvir a sua mãe distante na varanda
onde ficou para a ressurreição do ácido


rosto herético
e espetado no tempo perdido
dorso nu e seios decompostos
implorando uma súbita aparição
junto das nebulosas de estrelas perfiladas
que estão na meloloucura sideral
dos abismos psicanalíticos da memoria da infância
regurgitada em delirium tremens
fanáticos de misticismo


ela
no íntimo de si mesma
amaldiçoa o ventre
donde ele partiu para a descoberta da luz


numa praia distante
hoje arrastam as suas dores
vítimas de um suicídio
que nunca existiu potencialmente
porque ele sempre foi parte constitutiva
das suas vidas


mãe e filho
sofredor e sofredora
tema e actor duma só tragédia
fado de um só destino


fruto ou drama
sangue coalhado de madrugadas
com gatos nos diospireiros
o que o mesmo é dizer
de frente para o nada


diremos então outro instante
que não há-de levar a nenhures

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Tríptico dos Faunos


1. Sou ao crepúsculo
    nas areias esvaído


    o mar de prata embebeda
    o nevoeiro envolvente dos olhos


    e há faunos por estas
    planícies de águas cintilantes




2. O desejo que o Verão derrama
    é demais para estes corpos


    amados no segredo dos lábios






3. Ó Mar
    dar-te-ia o sangue
    o conhecimento
    a beleza


    o corpo é puro


    dá-me licença.

(in Eros)



Chercher les mots exacts


Chercher les mots exacts
dans le temps qui reste
            les paroles perdues dans la vie
      avec son theatre fulgurant de desir
      comme de la fenetrê au dessus des toits de paris


é isto uma porta para o céu
                            escarrado de estrelas?


para os discípulos da experiência
            a mente cresce na escuridão das noites
                          onde as horas caem vagarosamente


            percorremos kms pelas ruas
            à espera de nos surpreendermos
            num qualquer imarcescível instante mágico


como se tivessemos de captar
toda a capital de um só fôlego
           sorver de um só voo
           o falo das catedrais
           o sarro das fontes
           o mofo dos cemitérios
           o nocturno absinto dos bares de
                                           montmatre
           as cervejas do inferno do marrais à
                                                     bastilha
           da luminosidade prodigiosa dos museus
           à luz eléctrica do rivoli aos champs
                                                     elisées


no cais dos poetas
vemos o sena evaporar
           as lágrimas das coristas do lido
           que perderam os seus amantes
           na flor sexuada dos bateaux ivres


quando a noite de paris
se fecha contra os turistas
           e o metro vomita os últimos passageiros
           apinhados nas carruagens
           como lápides no pérè lachaise


todos em busca de morissom
           para lá deixarem um cigarro
           o ácido da manhã


toda uma geração que resistiu à ditadura
           se entusiasmou com grandes utopias
           e ficou confinada a um quotidiano vazio
                                                               e sem glória.

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Para quebrar as amarras da lua


Para quebrar as amarras da lua
                                 em barquinha
          posso subir a escada de estrelas
          numa noite que quizer
          abrir o sangue o leite o choro da criança
                                  que não tarda nua nos espelhos da casa
                                                                                   deserta


por corredores labirínticos folheados pelos dedos
         para ler o espírito do tempo
         destilar a saudade do futuro
       
quando é mais fácil questionar o passado
         pela vaidade pela soberba
         como animais cansados no fio da história narrada
num qualquer quarto dos subúrbios
                               sem janelas exteriores
         onde as flores murcham
         só de soletrar o teu nome


as roseiras brotaram dos teus lábios
         com a força desmedida dos dias
         que demoram a estação das chuvas


voltas que o perfume dá até entornar
          a paisagem dos teus olhos
          em brasa sobre as coisas
          que se rasgam na distância
          na velocidade do sexo
          na humidade da língua
          até ao tutano


coisa alguma depois da sesta
a sombra fugaz do diospireiro no inverno
          se o sol o visita e o gato
          espreguiça o silêncio


fica para sempre na gravura distorcida
          da matemática dos sentidos
          mesmo se a manhã é doida e acorda desvairada
                         de um sonho sanguinolouco
                                                e impossível


a filosofia fica toda na sarjeta
e a vida se a pudermos reabilitar
          segue o impulso devasso do fogo
          até fragmentar a memória

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Nova canção para adormecer


Eu não durmo
a teoria é mastigar as horas os minutos
          com os ouvidos
a obra o desassossego a fúria
como flores precoces da primavera


tampouco sonho acordado
livros debruçados na cabeceira em chamas
         do fumo inalado pelos pulsos
palavras derretidas escorrendo no tempo
esquina de papel dobrado de frente para
                                                        trás
         pela carne dentro dos dias
         de círculos herméticos
cada vez mais apertados à velocidade do caos


as mulheres têm uma inata capacidade
para misturar as águas
         as semanas o frio
         as canas que se alongam na distância do ribeiro
na sua alegria eterna sobre as coisas
como o sol a romper do sangue das coxas até ao púbis


eu não durmo
         as mulheres têm uma teoria
         do género insuspeita
um livro com palavras por dentro da vida real
da faminta fome do desejo
da loucura oprimida pelos nervos e pus


de noite as paisagens de água passeiam
a humidade salina pelas rochas
e o orvalho brilha sempre com a lua emudecida
que desce pela noite
às mãos expostas à crueza da luz
de uma visão demente e solitária


eu não durmo
         quando é pacífico o mar
e mesmo a espuma dos lábios ou a sua secura
seca a garganta elítica de tanto esperar
as areias luminosas que invadem as praias
com o crepúsculo rosa da manhã


não existiam ainda ontem
tenho essa teoria antes do início de tudo
mesmo sabendo a movimentação errática dos astros
e o seu posicionamento na mais obscura constelação
nenhuma teoria é mais forte que a prática


as mulheres resistem
à cruel exposição solar
como um grande vocábulo
que anda de trás para a frente
em círculos no deserto até ao luxo


vá lá raiz transpirada eu não durmo
porta que toco na maçaneta dourada
de luz de arroz de azeite
e de novo o sal da despedida
até sair do sonho pelo buraco da fechadura
envolta em relâmpagos
com a língua presa nos cactos da distância


eu não durmo
conduzo a uma velocidade transbordante
         “a vida é o que nos acontece
          enquanto fazemos outros planos”

(in Solar Impudor dos Pássaros)



Arte poética




a lua invade as galerias da mente
para dissipar a escuridão indizível
dos passos dados em volta
da crua identidade do medo


as palavras demasiado gastas
no advérbio do futuro
vagarosamente sobre o ombro
de um lado para o outro


os poetas que vamos perdendo
à medida que se infere na história
reflectem o vazio do verbo
e da metáfora mais densa


os calafrios percorrem o sangue
e povoam de insónias as madrugadas
gestos mágicos - alquímicos até
quase tudo perto da eternidade


a água penetra o corpo da noite.

(in Solar Impudor dos Pássaros)


     (Texto lido na Apresentação do Livro, Porto 26 de Novembro de 2011)
A propósito de
“Solar Impudor dos Pássaros”
de José Queiroga

                                     "A poesia é uma consciência aprisionada.
                                      Há que abrir-lhe a porta para o mundo.
                                      O livro é o passaporte”.

Convidaram-me a apresentar este livro de poesia. É com prazer que o faço, ainda que a leitura da obra seja, de certeza, muito mais eloquente do que as minhas palavras.
Não é nada fácil apresentar um livro, e se de poesia for, a dificuldade aumenta significativamente. É preciso que eu tenha percebido, tenha entrado nele com alguma profundidade. Mas como entrar na subjectividade de um eu que se mostra, escondendo-se atrás de palavras, de metáforas, de imagens? Que não diz o que queria dizer, mas que diz o que não queria dizer? E há ainda a ter em conta a minha própria subjectividade; foi com ela que li os poemas.
            Aqui sentada, com tantos olhos fixos em mim, até me sinto amedrontada. Mas tem de ser. O meu amigo Queiroga espera decerto que eu dê conta do recado.
E desculpem, com uma memória tão pouco fiável, tenho mesmo de recorrer aos papéis.

Há certamente muitas formas de ler poesia e de ler este livro. Cada um dos presentes fará a sua leitura, bem diferente da minha, ou melhor, das minhas, porque de cada vez que se lê um poema, faz-se uma outra leitura que se renova constantemente, que é sempre única e será sempre única de cada vez que se repetir.
É que ler poesia é diferente de ler uma narrativa. Desta nós exigimos que tenha um fio condutor que se vá desenrolando e a cada momento acrescente mais dados aos já apresentados, conduzindo a um final, aberto ou fechado.
Com a poesia tudo é mais fácil. Podemos ler um só poema, ou mesmo um só verso que nos atraia e através dele ampliar a nossa relação com o mistério que toda a obra encerra. Podemos abrir o livro ao acaso, começando a leitura onde calhar. Somos livres e isso é fantástico, porque não perderemos o prazer estético nem a emoção.

Jorge Luís Borges disse que “De todos os instrumentos criados pelo Homem, o mais espantoso é o livro”. E eu digo que um livro é sempre espantoso porque é a marca do desejo de sobreviver, de deixar a marca de uma existência. Uma fuga ao esquecimento e à morte, a única forma de ser imortal.
Este livro é tudo isso e é um objecto lindo como todo o livro é. Mas este é-o mais do que qualquer outro. São poemas – uma linguagem com conotações especiais, com significados diferentes dos comuns - e ilustrados por desenhos extremamente belos: poesia feita de palavras, e desenhos feitos de traços, duas linguagens, ou dois sistemas semióticos postos em diálogo, que rumam numa mesma direcção, complementando-se e concorrendo para a transmissão da mensagem.
Alguém afirmou que a pintura e o desenho são um meio de comunicação independente das palavras, sem raciocínio ou axiomas. Faz-se para ser visto. Mas porque os nossos olhos caminham sempre à nossa frente, quem pega no livro, primeiro vê, e o que vê pode despertar-lhe o desejo de saber mais e, portanto, de ler. Eis o que me parece ser uma das funções da ilustração, para além da beleza que confere ao objecto livro, beleza que temos de agradecer ao nosso mestre Alberto Péssimo.

Nesta obra a voz poética parece-me ter a sua musa na vida e na terra que a alimenta, não no sentido vulgar do termo, mas na visão da terra como terra-mãe, lugar onde se ancora a mesma vida. É a casa, o jardim, a praia e a montanha, o rio, o dia e a noite, o Verão e todas as outras estações.
É “Ser extraordinariamente vivo”…”Estar extraordinariamente vivo (9)”; é o pulsar do dia a dia dentro da casa que enlouquece, as insónias que nos fazem “sentir que as paredes se abrem e nos contam histórias secretas (8)”; o mar, a praia, “as dunas em que adormeces em Junho e que ardem de ansiedade pelo regresso das areias que o mar levou (55)”; “a rápida soberania do sol”, “loucura branca que invade as casas perto do mar (28)”, e tantas outras citações que aqui poderia fazer.
Parece que o eco deste mundo vem de longe, do passado, mas também do aqui e do agora. É um inventário de vivências, de percepções, de sensações. É uma voz que nos chega tingida pela subjectividade e pela ficionalidade, produzindo em nós efeitos de ordem sensível que reclama dos sentidos, exigindo de nós leitores que reconheçamos lugares, objectos, odores, sons, cores.
São, por vezes, instantâneos, recortes da realidade, distorções, desvios, mundos reais ou mundos possíveis. Um adensamento do ar, uma leveza que se pode tocar, um entrar na água, colar o corpo na areia, ouvir o assobio do vento, ficar ofuscado pelo brilho do sol. Todo um mundo de sensações, distorcido pela subjectividade do autor.
Mas também não posso passar ao lado do seu espírito crítico e do seu desencanto face a “este país que não pode continuar a ser habitado pelas estátuas de sal do passado”, sem olhar o futuro de frente, desencanto que se estende ao mundo dos problemas sociais, à corrupção, à falta de perspectivas para esse futuro. Mas a esperança não morre (41 (ler). Surge mesmo o apelo à acção (47). É a hora! - diria Fernando Pessoa.
São também as deambulações por outras paragens, por outros mundos que tocam, com o seu exotismo e a sua história, a sensibilidade do eu lírico: Paris, Florença, Marraquexe e outros. E cito: “Aonde não fomos, não somos”.
O sonho de um paraíso escondido numa ilha do Sul será a metáfora da perfeição, representará todos os seus anseios, mas também a dor da impossibilidade da sua realização, porque a ilha só existe como mito.
Tudo isto vai passando pelo crivo da sua alma de poeta que, a falar de si, fala de todos nós: é como se interpretasse os nossos sonhos, as nossas angústias, saudades, desencontros.
Isto, porque ele sabe que a poesia pode ser um traço de união, uma ligação directa entre o poeta que sente e escreve e o leitor que não consegue expressar por palavras os seus sentimentos, emoções, anseios.
A linha poética central da obra parece-me ser, portanto, a vida, o Homem num labirinto sem saída. A vida e a sua finitude, o tempo, no fundo aquilo que preocupa e ocupa todos os pensadores: a angústia existencial.
São paisagens, interiores e exteriores, que se prendem com emoções e sentimentos, ou com lugares, com o ritmo das estações, o ritmo das horas, dos dias, as férias, os fins de semana, o passado e o presente, e ainda um saltar para o futuro numa espécie de antecipação daquilo que há-de ser, “quando caminho, não são as pernas que me doem, mas as saudades do caminho futuro” (34).
            É a adolescência com os seus sonhos, a juventude com os seus desejos e a idade madura, os amores, um olhar sobre o tempo e os lugares onde a sua vida se instala.
            Mobiliza, no fundo, as suas energias em torno daquilo que lhe permita fazer a celebração da vida e esconjurar a morte, como todo o artista que quer conquistar para as suas obras uma eternidade que nos é vedada, a nós, humanos.
“A cada instante renascemos para a morte”, afirma no poema “EU digo: a boca aberta”, mas renascemos, e isso é o importante; somos eternos, apesar dos nossos medos (p. 37 – ler)
Como todo o livro, este também é um lugar de memórias, a evocação de momentos de uma vida, em que as lembranças se sedimentam, se infiltram e enraízam, a memória se incarna, numa reinvenção do passado.
Porque um livro é um lugar de permanência. “No campo da memória se colhe a poesia”.

            E também já aqui dissemos que esta é uma poesia com uma grande carga subjectiva, aliás como a maior parte da poesia sempre é. Mas toda a arte carrega com a subjectividade do artista e por isso, nela existe espaço para o quebrar de regras, para a liberdade.
E a propósito de liberdade, não posso deixar de referir o título da obra: Solar Impudor dos Pássaros, frase talvez estranha para alguns, mas que por si só contém vários símbolos de liberdade. Quem mais livre que um pássaro que voa de asas abertas ao sol, num dia de Primavera? E o impudor com que ele observa lá de cima tudo quanto fazemos, não respeitando a nossa privacidade, é o mesmo do autor que sem pudor é capaz de abrir para nós o seu íntimo, a sua maneira de ver a vida e de partilhar connosco sentimentos, momentos, emoções.
Mas a sua liberdade manifesta-se também a um outro nível: o de saltar de tema em tema, às vezes bruscamente, o de se servir das palavras conforme as suas necessidades de comunicação, alterando-lhes, por vezes, o sentido, o de alternar, juntar, cruzar o objectivo e o subjectivo.
Liberdade que se manifesta ainda, e de uma forma explícita, a nível estrutural, com rupturas sintácticas, ausência de pontuação, verso livre, suspensão de frases, mesmo faltas de concordância, isto é, subversão de regras gramaticais.
Então a liberdade terá ido longe de mais, nalguns momentos - dirão porventura alguns de vós. Oh! deixemo-la ir.  O poeta com toda essa liberdade marcou encontro com a beleza das palavras, das metáforas e das imagens e o seu sensacionismo toca a nossa pele:

     É “a água que é um rumor de montanha intranquila”
    “A visão, um momento de silêncios tenebrosos”
    “As janelas que são debruadas a oiro lento”
    “O vento que estica o sol pelas pontas”
    “O silêncio que é de rosas na boca”

E tantas mais eu poderia aqui citar, mas deixo a cada um de vós o prazer da descoberta.

Para concluir, que já roubei algum do vosso tempo, direi que já que ser poeta é perseguir o infinito e a sabedoria, lutar contra a morte, estar vivo, deixo aqui um voto:
Que a leitura destes poemas possa ajudar todo o leitor a ser poeta, ainda que só no seu íntimo;
Que todo o leitor aprenda a conhecer a morte para melhor apreciar a vida;
Que estes poemas, que são um tributo a essa mesma vida, o sejam a todos os poetas, sejam quais forem as suas linguagens;
Que esta publicação, acima de tudo traga ao seu autor o prazer da obra feita, a tal imortalidade que todo o artista persegue.
                                                                                     
                              Maria Adélia Fernandes





                 

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